Memórias: ‘mochilando’ entre a Bolívia e o Peru15 min. de leitura

Conheça as principais cidades da Bolívia e o que fazer em cada lugar em uma viagem de uma semana

Tatiane Matheus

O s “perrengues” da viagem se tornam as melhores histórias para contarmos depois e, o que nos aborreceu, vira motivo de riso

“O que estou fazendo aqui?” — pergunta inevitável naquele momento. Estava na parte de trás de uma van sentada em cima da minha mochila e outras malas em cima do meu pé. Meu (então)* namorado estava também na mesma posição, com certeza mais desconfortável. Se não havia espaço para mim com apenas 1,53, imagine para ele com 1,87. Nunca o vira tão irritado (até então).

Mais quatro homens bolivianos nos acompanhavam naquele espaço mínimo. Os garotos israelenses e a turma de garotas argentinas que também “mochilavam” (conhecemos umas horas antes) se apertavam no banco da van. A cada quilômetro a estrada que nos levava ao Peru estava bloqueada com pedras. De repente, pessoas com lenços no rosto e enxada na mão fizeram com que o carro parasse. Por um segundo sentir o tempo parar.

“O que estou fazendo aqui?” —  sim, o pensamento se repetiu seguido de um arrepio congelante subindo por todo o corpo. Meu coração acelerava. Talvez seja impossível pensar em viajar pela América Latina e não querer bancar o Che Guevara. Há um certo romantismo em conhecer o mundo com uma mochila nas costas, sobretudo, para quem havia assistido o Diários de Motocicleta, do Walter Salles. A ideia dessa viagem surgiu em um final de semana em Ubatuba (SP). Depois de pensar em vários roteiros, decidimos começar nossa saga por Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia.

A chegada  —  Chegamos no aeroporto faltando pouco para o check-in. Lá corremos pelo saguão e conseguimos fazê-lo cinco minutos antes do horário limite. Alívio. Achávamos que esse seria o pior momento da viagem. Lemos em todos os guias sobre possíveis problemas e pensamos em todas as possibilidades. Ou quase. Para evitar problemas com os albergues, fizemos a carteirinha do Hostelling International e buscamos somente aqueles que estavam credenciados. Iríamos chegar de madrugada e fizemos as reservas pagando 20% da diária.

Leia também: Viajar ajuda a conhecer os nossos preconceitos e nos livrar deles

Voo tranquilo. Desembarcamos. No aeroporto internacional de Santa Cruz de La Sierra, um brasileiro simpático com uma pequena mochila dizendo que iria para Machu Picchu queria dividir o táxi com a gente. Inventamos uma desculpa. Em um dos guias aconselhava para tomar cuidado com pessoas muito simpáticas. Melhor evitar… Talvez lemos coisas demais, assistimos filmes demais ou até mesmo eram preconceitos demais. Aliás, viajar nos ajuda a conhecer os conceitos preestabelecidos e, o melhor, a nos livrar deles. Negociamos o preço do táxi com o motorista antes de entrar. Outra dica interessante. Ora, nada e ninguém iria atrapalhar essa “perfeita viagem”! Somos precavidos. No hotel, um atendente mal-humorado disse que não havia vagas. Estava com o comprovante de reserva na mão. “Ah… o e-mail é do escritório de Sucre e eles devem ter esquecido de repassar. Não temos vagas”, replicou e voltou a assistir seu ‘Homero Simpson’ —  deu a entender que estávamos incomodando.

Passava da meia-noite. Onde ir? Para nossa sorte o taxista nos esperava. Ele nos levou para outro hotel, de três estrelas, e fez questão de não cobrar nada, havia escutado a conversa que tivemos no primeiro hotel. Foi muito legal.

“Viajar te deixa sem palavras – depois lhe transforma em um contador de histórias”, Ibn Batttuta

Muitos táxis eram bem decorados com apetrechos com um estilo à kitsch. Santa Cruz de La Sierra me remeteu à uma cidade interior agro


Santa Cruz de La Sierra
Santa Cruz de La Sierra lembra uma cidade do interior paulista ou mineiro. O que impressiona é a quantidade de picapes e carros 4×4 de marcas japonesas. Santa Cruz é o departamento mais rico de todo o país. Também é a pedra no sapato de Evo Morales e Evo Morales é a pedra no sapato dos produtores ricos que querem manter o status quo. Como vocês acompanharam nos jornais (texto de 2008, quando houve uma crise política na Bolívia) há um movimento que quer dividir o país em regiões politicamente autônomas que têm sua própria produção, tributação e legislação  —  com apenas um pequeno nível de coordenação com o governo nacional. Morales queria manter o poder centralizado, afinal, a região é um importante polo da produção petroquímica.

Quando acordamos, fomos explorar a cidade. Comemos um ceviche delicioso em um restaurante que o dono é colombiano que perguntou se eu era argentina quando eu pedi um suco de ‘frutilla’ pronunciando os dois ll com som de ch. Engraçado. Confesso que adquiri fluência na língua de Cervantes na terra de Borges. Mas ser confundida com uma argentina é no mínimo peculiar.

Nada deliciosa foi a mosca frita que eu quase comi na rodoviária que acompanhava as batatas fritas. Prefiro me abster de comentários. Compramos uma Muy Interesante e uma Cosmopolitan para passarmos o tempo enquanto esperávamos nosso ônibus ‘bus cama’ para Cochabamba que a inclinação da poltrona era bem menor (sem contar o desconforto) do que a do ônibus que faz o trajeto São Paulo-Santos.



Cochabamba
Chegamos moídos em Cochabamba, o dia acabara de amanhecer, ligamos para o próximo hostel para ver se havia vaga. Não fizemos mais reservas o resto da viagem. Em uma lan house consultamos o site hihostels e ligamos da rodoviária ou do aeroporto. Se o lugar não agradasse, era só procurar outro. Gato escaldado…

Cochabamba é uma cidade onde muitos brasileiros vão estudar, principalmente medicina. No centro da cidade, indígenas protestavam. Diferente de Santa Cruz havia muitas senhoras cholas caminhando pelas ruas. De descendência indígena, elas vestem roupas coloridas, saias rodadas e um chapéu à Chaplin com abas um pouco maiores, duas longas tranças são unidas pelas pontas com um pedaço de lã ou linha. Levam seus filhos amarrados no corpo presos aos xales. Bebês lindos de olhos puxados, cabelos negros e bochechas rosadas. Algumas pedem dinheiro, outras vendem tudo o que você pode imaginar.

A vista da cidade do teleférico que nos leva ao Cristo de la Concórdia é linda. Ele tem feições indígenas. A cidade também tem um museu arqueológico (esquina da Calle Jordan com a Calle Nataniel Aguirre) muito interessante. Mas, parodiando um programa de turismo, essa ainda não é minha Bolívia.

ônibus de viagem parado em uma rua de La Paz

La Paz
Com um ônibus bem mais confortável fomos para La Paz. Na capital, os táxis, como todos os do país, são bem coloridos e cheio de enfeites. Vende-se de tudo nas ruas. A cidade é a capital mais alta do mundo, mais de 3.500 metros acima do nível do mar, no Altiplano dos Andes.

“¿Rendirse? !Qué se rinda su abuela, carajo!” — Na Calle Jaén, há vários museus. Com apenas um bilhete, conhecemos o Museu Costrumbrista Juan Vargas, do Litoral Boliviano e dos Metais Preciosos. Eles nos dão uma aula de história que nos ajuda a entender um pouco desse país que é o mais pobre da América Latina. Mas é a placa colocada em destaque no Museu do Litoral (sim, a Bolívia já teve um porto e o perdeu para o Chile) que melhor resume o orgulho boliviano.

Em 1879, em Topater, o Coronel chileno Villagrán disse ao engenheiro boliviano Eduardo Abaroa, no meio da guerra entre os dois países, que o exército boliviano estava em posição de inferioridade com civis sem experiência na arte da guerra e que era melhor se render. A conversa durou horas, sem nenhum entendimento. Em um momento Villagrán dá um grito imponente:
– Abaroa, ! Ríndase!
– ¿Rendirse? !Qué se rinda su abuela, carajo!”, respondeu.
Coronel Villagrán ordenou os disparos e Abaroa morreu e muitos de seus homens ficaram feridos. A frase está em uma placa de bronze para lembrar desse herói boliviano.

Copacabana é uma cidadezinha na Bolívia, mais antiga que a famosa praia carioca, e fica às margens do Lago Titicaca


Copacabana, a princesinha do lago
Um bom lugar para entender a Bolívia é o lago Titicaca. Saímos de La Paz na manhã de sábado. O passeio é feito por muitas famílias nos finais de semana. Fomos de van. Tinha uns cinco estrangeiros, além da gente, havia casais de namorados, idosos, como também uma família com duas meninas e sua poodle. A bela paisagem faz qualquer desconforto ser esquecido. O azul intenso do lago que parece um mar calmo é fascinante. Para ir à Copacabana, pegamos uma balsa e seguimos por mais uma estrada.

Não, seu nome não é uma homenagem à famosa praia carioca. Aliás, foram marinheiros bolivianos que batizaram a ‘princesinha do mar’ quando navegavam próximo à praia, houve uma tempestade e eles rezaram para Nossa Senhora de Copacabana. Graça atendida e um novo nome de praia. A cidade dos tinawacos, povo pré-inca, é pequena, com apenas uma calle principal, uma praça e uma igreja.

Sábado, é o dia dos motoristas receberem bênçãos. Os carros estavam com flores em seus pára-brisas. O quarto do hostel em que ficamos tinha vista para o lago. Quando fomos à igreja, compramos velas de uma senhora com vestimentas de chola para agradecermos à senhora de Copacabana pela viagem. Antes de acendermos, um senhor de camisa vermelha e jaqueta preta interrompeu nossas preces. Começou a ‘rezar’ perguntando quais eram nossos signos em uma bênção estranha. Quando terminou, pediu dinheiro. Fiquei pensando se a gente tinha cara de turistas otários.

À noite, Copacabana tem boas opções de restaurantes e bares. Mas em um deles havia um garçom que já foi jornalista e morou no Brasil. Carlos é o tipo de pessoa que marca uma viagem. Deveria ter uns 50 anos ou mais, suas histórias de quem já fez de tudo na vida são ‘o algo a mais’ necessário em qualquer viagem. Tivemos uma grande aula de História recente do país.

No dia seguinte, pegamos um barco para a tão esperada Ilha do sol. Novamente, ficamos maravilhados com os diversos tons de azuis do lago, do céu e das cordilheiras ao fundo. O guia, a todo momento, repetia que a ilha era pré-inca e que conheceu Jacques Cousteau quando era criança. A paisagem é inebriante, mas foi o caminho de volta ao barco que nos deu a certeza que, pelo menos naquela viagem, ainda não estávamos preparados (fisicamente) para fazer a trilha pré-inca.

Pelo caminho, crianças passavam por nós pedindo para ‘sacarmos fotos’ com as mãozinhas abertas pedindo ‘monedas’ ou caramelos. O caminho de muitas subidas, descidas e pedras foi cansativo e parecia uma eternidade. No final do passeio havia um moço com uma mão estendida pedindo dez bolivianos (dinheiro local). Quem passava por lá, aliás, todos, saíam resmungando.

O argumento era que se não pagarmos não poderíamos sair da ilha e que o dinheiro era para sua limpeza. Mas pelo caminho encontramos garrafas plásticas jogadas no chão — prática de turistas nem um pouco conscientes — e ninguém pediu o papel que comprovava nossa ‘colaboração’ para a limpeza da linha na hora que fomos embora.

Na volta, todos que estavam no barco estavam exaustos. Quando perguntaram se queríamos parar por 15 minutos na ilha da Lua, todos se entreolharam, esperando que se alguém ainda teria pique para isso. Um menino ruivo disse um palavrão em inglês quebrando o silêncio. E, em uma babel de idiomas, chegamos à unanimidade que queríamos retornar.

Em Copacabana, buscamos uma agência de turismo para comprar nossas passagens para Puno, no Peru. Após pesquisar, escolher o ônibus que parecia mais confortável, pedir uma nota fiscal com a descrição dos serviços, nos preparamos para a viagem. Entretanto, havia uma greve e a estrada foi bloqueada. A viagem seria no dia seguinte. Mas a greve acabara no mesmo dia e iríamos viajar no final da tarde. Havia uma turma de argentinas, de uns garotos israelenses, um suíço, dois irmãos costa-riquenhos e um casal de brasileiros: nós.

Apareceu uma van grande. Porém, disseram que seria apenas até a fronteira onde um ônibus, com a descrição do que havíamos pagado, nos esperaria. Porém, ao chegar no lugar, não havia nada. Depois de uma longa espera, apareceram duas vans que nos levaram para uma cidade próxima. Já anoitecera quando um outro senhor, diferente do que nos acompanhava, pediu mais dinheiro para nos levar para Puno, no Peru. Ônibus? Não havia nenhum. Mais dinheiro? Ninguém iria dar mais nenhum tostão. “Ora, são equivalente a mais um dólar”, argumentava. A questão não era essa. Pagamos por um serviço e recebemos por um outro de qualidade menor e ainda querem mais dinheiro?

Após uma ‘comissão de turistas’ onde se falava inglês e espanhol dissemos que só pagaríamos a quantia depois que chegássemos. Afinal, estávamos no “meio do nada” ou ao menos não sabíamos onde estávamos, nem como sair dali para o destino. Após o nosso pequeno “levante”, aceitaram a contragosto. No porta-malas ao lado das bagagens, quando esticamos as pernas já prevendo uma viagem não muito confortável, começaram a entrar mais pessoas. Reclamei e o ‘agente de turismo’ disse para deixarem mais espaço para mim porque eu era estrangeira. Confesso que fiquei revoltada.

Comecei meu discurso que todos somos iguais e que era um absurdo viajarmos assim, independentemente da nacionalidade. Valeu. Desistiram de colocar mais gente no espaço. Na viagem comecei uma conversa com um deles, um professor que iria fazer uma prova na manhã seguinte em Puno. O que eles me contaram não é diferente do que vemos no Brasil. Desemprego, professores mal-remunerados e uma infinidade de problemas que, para nós, já são conhecidos.

Paramos por causa das pedras que bloqueavam a estrada. Homens com lenço cobrindo o rosto e enxadas na mão nos pararam. Divididos em cada lado do veículo, balançavam-a enquanto eu sentia um arrepio frio na espinha. “O que estou fazendo aqui?” — era inevitável não pensar nisso. O motorista pagou com algumas notas e eles deixaram a gente seguir.

Um dos senhores bolivianos saltara da van e eu fui sentar no apertado banco. Antes de passarmos pela segunda aduana, um dos passageiros, que ficara todo o tempo em silêncio, jogou no meu colo um saco preto que eu não tinha ideia o que tinha dentro, joguei-o de volta como na brincadeira infantil “batata quente”. Logo depois, o carro foi parado por um policial e com a lanterna olhou dentro da van e liberou todos sem buscar nada.

Depois soube que ele passou esses sacos para todos os outros que estavam viajando no porta-malas da van. Uma escondeu debaixo da saia, outro na mochila. Ninguém ofereceu nada para ele, que passara a viagem com a cara fechada. Mas, (acho que) deve ter jogado para mim por ter conversado com eles. Nunca saberei o que tinha naqueles sacos.

Finalmente, chegamos em Puno. Ninguém pagou mais nenhum tostão. Será que valeram os meus argumentos e o da menina argentina? As mais baixinhas de todo o grupo e as mais bravas. Mas, por favor, sem estereótipos, não é mesmo? Apenas fica a piada (que tive de ouvir e acabei replicando). O fato que era melhor não criar polêmicas, ainda teríamos de esperar as passagens para Cuzco (já pagas). No horário combinado, o agente de turismo não pareceu.

Vencidos e conformados, fomos tomar o café da manhã no hotel. Quando o recepcionista dizia que não era seguro fazer negócios nessas “agências turísticas” em Copacabana e que até o que parecia formal era informal e que aquelas notas fiscais não valiam nada. Não sei dizer se é verdade mesmo, mas achei um tom de preconceito dele em relação à nacionalidade dos vizinhos do outro país. Subimos para o nosso quarto resignados. Minutos depois, ligaram dizendo que havia um senhor nos procurando (?!?!?). Pois, bem, na hora marcada levaram as nossas passagens para o nosso próximo destino e com muitos pedidos de desculpas.